GOLPE NOS IDOSOS . . . C U I D A D O !

GOLPE NOS IDOSOS . . . C U I D A D O !

VAMOS BUSCAR !

VAMOS BUSCAR !


terça-feira, 1 de setembro de 2009

A ordem sobe o morro


sociedade

REVISTA ÉPOCA

A ordem sobe o morro



Uma bem-sucedida estratégia de “pacificação” tira favelas das mãos do tráfico e das milícias e as devolve aos moradores. Ela é aplicável em toda parte?



Nelito Fernandes







No alto do Morro Dona Marta, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, Igor Nascimento Lourenço, de 12 anos, confere o vento e prepara sua pipa. É um gesto comum que acontece em todos os morros da cidade. Mas ali, no Dona Marta, representa mais. Nas favelas do Rio, traficantes sempre obrigaram garotos a empinar suas pipas como sinal de que a polícia chegara. Há um ano, o Dona Marta é um dos cinco morros da cidade dos quais a polícia expulsou os traficantes. Agora, Igor sabe que não corre o risco de ser confundido com um olheiro do tráfico. Surpreso com a presença dos repórteres que interrompem sua brincadeira, ele olha para mim desconfiado. Em seguida, num tom desafiador, pergunta: “Por que vocês não vinham aqui quando tinha bandidagem?”.



Eu vinha. Estive no Dona Marta em 1996, quando Michael Jackson foi gravar um clipe lá. Resolvi morar no morro durante uma semana para conseguir imagens e depoimentos exclusivos. Depois de três dias, eu e o fotógrafo acabamos expulsos por traficantes. Na saída, o chefe da favela, Marcinho VP, concordou em dar uma entrevista, desde que não citássemos seu nome. Éramos três repórteres. Ele pegou nossos crachás, anotou nosso nome e apertou nossa mão em cima de uma laje, às 3 horas da manhã: “Trato de homem”, disse. O trato foi desfeito a nossa revelia. Os chefes das redações onde trabalhávamos quiseram dar o nome do bandido. Fomos ameaçados. Durante 20 dias, eu saí da cidade. Desde então, jamais voltei ao Dona Marta. Igor, o menino da pipa, não tinha como saber dessa história. Mas sabia que ninguém do asfalto podia subir o morro livremente.



Para entrar numa favela dominada pelo tráfico no Rio, deve-se, antes, ligar para a associação de moradores. Agendada a visita, alguém da associação o acompanha. É certo que no caminho algum traficante vai aparecer. O presidente da associação, então, diz que está tudo bem. Como agora o Estado diz que o Dona Marta está livre, resolvi fazer uma espécie de teste. Entrar sem avisar nem ligar. O medo de anos ainda estava em mim.



Antes de subir o morro, eu e o fotógrafo André Valentim passamos no posto de polícia. Fomos recebidos por um policial sorridente que teclava num laptop. “Está tranquilo, pode subir”, disse ele, simpático. Um policial simpático? De laptop? Sinal de que as coisas mudaram. Animado, o motorista da equipe, Vinicius, pediu para entrar também. Pegamos um bondinho que nos levou quase até o pico: a última estação está quebrada. Inaugurado em maio do ano passado, o bondinho – inspirado no modelo que ajudou a conter o tráfico em Medellín, na Colômbia – tem três estações. Um compartimento de carga ajuda os moradores a carregar as compras, sacolas, mochilas e bicicletas. As 2 mil pessoas que usam o serviço gratuito diariamente ganharam a companhia de turistas, que passaram a subir o Dona Marta para ver o morro de perto, aproveitando o clima de paz. Nós fomos sozinhos, sem polícia, sem ninguém da associação de moradores. O movimento nas ruelas é intenso. Gente subindo e descendo, som alto tocando, o cheiro inconfundível do esgoto da favela no ar. Nas lajes, nenhum bandido. Só crianças soltando pipas. Era quarta-feira, 13 horas. Conseguimos subir e andar por todo o Dona Marta sem ver um bandido. Eu me senti como um exilado que pôde voltar. O morro nos foi devolvido.



Enquanto Igor posa com sua pipa, a menina Lúcia, de 6 anos, pergunta “qual é o meu beco”. Quer saber onde moro. Endereço, no Dona Marta, é algo que não existe nem no vocabulário. As cartas são enviadas para a associação de moradores e ficam guardadas pelo nome. Não existe comprovante de residência. Dona Maria Therezinha de Lima, de 70 anos, mora no morro há mais de 50 anos e nunca teve como comprovar seu endereço. Agora, vai ter. A Light, empresa de energia elétrica da cidade, está instalando uma rede formal por lá. E vai cobrar. “Acho justo. Vou pagar e vou ter meu comprovante”, diz Therezinha. A empresa está distribuindo 600 geladeiras novas no morro, que ajudarão os moradores a economizar na conta.







“É bom não ter mais medo de que cortem a televisão” CATARINA MATOS, primeira assinante de TV paga da Favela do Batam







Apesar dos avanços, há desconfiança. Quase ninguém dá entrevistas. O medo é que a polícia vá embora e eles tenham de acertar contas pelo que disseram. Sem se identificar, reclamam também da polícia. Dizem que os policiais, no início da ocupação, eram truculentos. Ainda hoje, de vez em quando, distribuiriam safanões para organizar a fila do bondinho nos horários de pico. Os bailes funk, mesmo dentro de casa, estão proibidos.



O Dona Marta foi o primeiro morro do Rio a ter uma Unidade de Polícia Pacificadora, a nova estratégia do governo estadual contra o tráfico. Primeiro, os traficantes são atacados impiedosamente pelo Batalhão de Operações Especiais, o temido Bope do filme Tropa de elite. Finda a guerra, com os bandidos presos, mortos ou foragidos, entram em cena outros policiais – os que vão ficar permanentemente no morro. Eles têm formação de “policiamento comunitário”, não de confronto. São muito jovens e recém-formados. O capitão Hugo Coque, terceiro comandante da ocupação do Morro da Babilônia, é um deles. Aos 23 anos, estudou em São Paulo, fez instrução em direitos humanos e cursou a faculdade de formação de oficiais da PM. “A população já percebeu que estamos aqui para ajudar”, diz ele. “Nos receberam muito bem.”



No comando da operação da Babilônia/Chapéu Mangueira está outro oficial, Felipe Lopes, de 27 anos. Enquanto conversa conosco, Lopes é desafiado por Gabriel Souza, de 10 anos. “Eu vou te dar uma surra hoje, você vai ver”, diz o menino ao comandante, que ri. Lopes diz que costuma jogar videogame de futebol com as crianças da favela. O menino Gabriel afirma que perdeu do comandante por 4 a 0, mas quer uma revanche.



Presidente da associação de moradores do Chapéu Mangueira, dona Percília da Silva, de 70 anos, vê o comandante e chega para conversar. Ao lado deles, num muro da associação, há uma pintura da bandeira brasileira. Mas sem o lema “Ordem e Progresso”. A imagem parece comprovar que, ali, ambos ainda estão em falta. Lopes saca um bloquinho e começa a fazer anotações sobre o que diz Percília. É uma cena difícil de acreditar. Se eu não tivesse chegado lá de surpresa, iria jurar que tudo era armação.



Nas favelas do Rio, os traficantes impediam moradores de conversar com a PM. Um dos policiais envolvidos na ocupação da Cidade de Deus conta que mesmo os carros do policiamento comunitário foram recebidos a pedradas. “Quando a gente chegou, eu fui comprar pão numa padaria e o português não quis vender. Hoje já tem morador que serve água”, diz o policial.



Segunda favela ocupada, a Cidade de Deus, na Zona Oeste, tem 38 mil habitantes. A Secretaria de Segurança diz que lá ainda resta algum movimento de tráfico de drogas. Os policiais tentam se aproximar dos moradores oferecendo atividades. Uma escolinha de boxe funciona na laje do posto de polícia. Mas, das quatro favelas visitadas, é a mais tensa.



Na Favela do Batam, em Realengo, Zona Oeste, quem “tocava o terror” era a milícia, e não o tráfico. Ali, em maio de 2008, uma equipe do jornal O Dia foi torturada por milicianos. Na semana passada, dois PMs seguravam fuzis na entrada da favela. Entramos com um carro sem identificação. Moradores contaram que a milícia tinha uma tabela de preços: comerciantes “grandes” pagavam R$ 150 por semana; os menores, R$ 100. Barracas de camelô, R$ 30. Kombis de frete, R$ 110. O gás só podia ser comprado na mão dos milicianos, que exploravam também a TV a cabo clandestina. A PM prendeu parte dos milicianos e outros fugiram. Hoje, o Batam tem carros de companhias de gás circulando normalmente e nas geladeiras dos moradores existem ímãs com o telefone de várias empresas. A TV a cabo chegou oficialmente.



A dona de casa Catarina Matos, de 25 anos, foi a primeira a aderir. “É bom não ter mais medo de que cortem a televisão a qualquer momento”, diz ela. A polícia ocupou a casa que era usada pela milícia e, antes, por traficantes. Na piscina da casa, cem crianças fazem aula de natação. O professor é um policial.



É inegável que as favelas ocupadas estão em paz. A ocupação, porém, não provocou redução significativa nos índices de criminalidade. No Dona Marta, o roubo a lojas aumentou em 50% desde a ocupação. Outros crimes, como furto de carros, caíram em igual proporção. “O trabalho é de longo prazo. Não vai cair o crime porque os criminosos vão simplesmente mudar de lugar. Ele não vai deixar de ser criminoso só porque a polícia está no morro”, diz o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame. “Daqui a pouco vamos ter crianças que nasceram no Dona Marta e nunca ouviram um tiro de fuzil. Aí sim o crime vai cair.” Beltrame diz que no ano que vem 3.500 novos policiais chegarão. Novas ocupações vão acontecer. “Tem de ser policial novo, sem vícios”, diz ele.



Ninguém sabe se a estratégia vai seguir mesmo em frente ou se é possível fazer o mesmo nas quase mil favelas do Estado. Ninguém tem a mínima ideia se um novo governo daria continuidade ao programa ou se tudo não passa de um cartão-postal eleitoral. Mas é certo que a ocupação começa a dar resultados inimagináveis. Na terça-feira passada, moradores do Chapéu Mangueira estavam organizando uma manifestação. Planejavam ir às ruas pedir saneamento básico, luz e lazer. Estão acreditando que, enfim, são cidadãos. Em algum momento, talvez, alguém termine de pintar aquela bandeira que permanece incompleta no muro do Chapéu Mangueira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário